As três mentiras de Cuba Via Blog Dois em Cena
A blogueira cubana diz que as  chamadas "conquistas da revolução" são um mito e que só quem nunca morou na ilha  pode ter admiração por seu regime
Revista Veja, nas  bancas
 
Alejandro Ernesto/EFE![]()  |      "Convido quem vê Cuba como um exemplo a vir        para cá, sentir na pele como vivemos"   | 
A cubana Yoani Sánchez, 34 anos, foi convidada a falar  no Senado brasileiro e a comparecer ao lançamento de seu livro De Cuba, com  Carinho (Contexto), em São Paulo. A obra, que chega às livrarias neste fim  de semana, é uma coletânea de textos publicados por ela no blog Generación Y, o  primeiro a ser criado em Cuba. Na internet, Yoani discorre livremente sobre o  cotidiano do povo cubano, a ausência de liberdade e a escassez de gêneros de  primeira necessidade  mas, bloqueado pelo governo, seu blog (desdecuba.com/generaciony) só pode ser acessado fora da  ilha. Sua vinda ao Brasil, na segunda quinzena de outubro, depende de improvável  permissão do governo cubano. Nos últimos doze meses, ela solicitou visto de  saída em dez ocasiões para atender a convites no exterior. O visto foi negado em  três delas. Nas demais, os trâmites burocráticos demoraram tanto que ela  desistiu. Com 1,64 metro e 49 quilos, Yoani é formada em letras e vive em Havana  com o filho e o marido. Ela conversou com VEJA pelo celular. 
Em discurso a respeito do seu pedido de visto, o senador  Eduardo Suplicy citou o que considera três conquistas da revolução cubana: a  alfabetização, o aumento da expectativa de vida e a medicina de qualidade. Se  pudesse, o que você diria sobre isso em Brasília?
Eu diria que os laços  entre países não devem ocorrer apenas entre governantes ou diplomatas. Quando se  trata de Cuba, as estatísticas oficiais divulgadas pelas nossas embaixadas não  podem ser levadas a sério. Sou defensora da diplomacia popular, aquela que se  inteira da realidade diretamente com o cidadão. Não sou uma analista política.  Não sou especialista em nenhum tema. Não sou diplomata. Simplesmente vivo e  conheço a realidade do meu país. Aqueles que roubam o estado, que recebem  dinheiro enviado por parentes do exterior ou fazem trabalhos ilegais vivem  melhor que os demais. Uma pessoa que escreve em um blog pode ser condenada sob a  acusação de fazer propaganda inimiga. Os outros países não podem repercutir o  clichê de que Cuba é uma ilha de música e rum. É preciso olhar para o cidadão.  Aqui, nós vivemos e morremos todos os dias.
| "Sou totalmente contra o embargo. Não porque ache que as coisas seriam muito diferentes se ele deixasse de existir, e sim porque seu fim acabaria com o argumento oficial de que vivemos em uma praça sitiada e, por causa disso, o povo deve aceitar as mazelas cubanas" | 
Mas é verdade que 99,8% da população
cubana é  alfabetizada?
Antes da revolução, nosso país já ostentava um dos menores  índices de analfabetismo da América Latina. Uma das primeiras ações do governo  autoritário de Fidel Castro foi ensinar o restante da população a ler e  escrever. A questão principal hoje não é a taxa de alfabetização, e sim o que  vamos ler depois que aprendemos. A censura controla totalmente o que passa  diante de nossos olhos. E isso começa muito cedo. As cartilhas usadas na  alfabetização só falam da guerrilha em Sierra Maestra ou do assalto ao quartel  de Moncada pelos guerrilheiros barbudos. Meu filho tem 14 anos. Na sala de aula  dele há seis fotos de Fidel Castro. Tudo o que se ensina nas escolas é o  marxismo, o leninismo, essas coisas. Não se sabe o que acontece no resto do  mundo. A primeira vez que vi imagens da queda do Muro de Berlim foi em 1999, dez  anos depois de ela ter ocorrido. Foi num videocassete que um amigo trouxe  clandestinamente. Para assistir às imagens do homem pisando na Lua, foi  necessário esperar vinte anos.
A expectativa de vida realmente aumentou?
É uma  estatística oficial, sem comprovação, que não resistiria a um questionamento  mínimo feito por uma imprensa livre. Pelo que vejo nas ruas, é difícil acreditar  que os cubanos possam sobreviver tantos anos. Os idosos estão em estado  deplorável. Há uma avalanche de dados que poderiam ilustrar o que digo, mas  estes nunca são divulgados. Jamais fomos informados sobre o número de pessoas  que fogem da ilha a cada ano. Ninguém sabe qual é o índice de abortos, talvez o  mais alto da América Latina. Os divórcios são inúmeros, motivados pelas  carências habitacionais. Como há cinquenta anos quase não se constroem casas, é  normal que três gerações de cubanos dividam uma mesma residência, o que acaba  com a privacidade de qualquer casal. Também nunca se falou do número de  suicídios, um dos mais altos do mundo. 
Cuba tem mesmo uma medicina avançada?
O país construiu  hospitais e formou médicos de boa qualidade na época em que recebia petróleo e  subsídios soviéticos. Com o fim da União Soviética, tudo isso acabou. O salário  mensal de um cirurgião não passa de 60 reais. A profissão de médico é hoje a que  menos pode garantir uma vida decente e cômoda. A carência nos hospitais é  trágica. Quando um doente é internado, todos os seus familiares migram para o  hospital. Precisam levar tudo: roupa de cama, ventilador, balde para dar banho  no paciente e descarregar a privada, travesseiro, toalha, desinfetante para  limpar o banheiro e inseticida para as baratas. Eles não devem esquecer também  os remédios, a gaze, o algodão e, dependendo do caso, a agulha e o fio de  sutura.
Por que o modelo cubano continua sendo admirado na América  Latina?
Cuba só é reverenciada por quem nunca morou aqui. Eu já conheci  um montão de gente que idolatrava Fidel e, depois de um mês vivendo conosco,  mudou de opinião. Quando as pessoas descobrem como é receber em moeda sem valor,  enfrentar as filas de racionamento ou depender do precário transporte público,  começam a pensar de modo mais realista. Não estou falando dos turistas que ficam  uma semana, dormem em hotéis cinco-estrelas e andam em carros alugados. Convido  quem vê Cuba como um exemplo a vir para cá, sentir na pele como vivemos.
Como o governo tem reagido a seu blog?
O portal  Desdecuba.com, em que o site está hospedado, está bloqueado há mais de um ano  para quem tenta acessá-lo de Cuba. Há algumas semanas, cancelaram o site Voces  Cubanas, que possuía vários diários virtuais, incluindo uma cópia do meu. O  governo também se esforça para me transformar em uma pessoa radioativa. Membros  da polícia política me vigiam todo o tempo e dizem a meus vizinhos, amigos e  parentes que sou perigosa. Falam que quero destruir o sistema e sou uma  mercenária do império. Em um país onde todo mundo trabalha para o estado ou  depende da ajuda do governo, esse método surte efeito. Muita gente já se afastou  de mim. Alguns nem me telefonam. É uma luta desigual. Todo o poder de um estado  recai sobre mim. Até minha mãe tem sido vítima dessa campanha atemorizante. Eles  a pressionam no trabalho. Ameaçam tirar seu emprego. Ela não faz nada especial,  que possa desestabilizá-los. Não tem blog. Não é jornalista.
Qual é o trabalho de sua mãe?
Ela preenche formulários  em um ponto de táxi.
Como os cubanos veem Hugo Chávez, hoje o maior benfeitor do  regime comunista?
Hugo Chávez é o grande responsável pela perpetuação do  regime cubano. Cuba seria hoje muito diferente sem esse aporte de petróleo e de  dinheiro da Venezuela. O que me preocupa é o componente de autoritarismo e de  messianismo de governos como os da Venezuela, Bolívia e Equador. Chávez reprime  brutalmente a liberdade de expressão, e temo que os outros sigam essa abordagem,  de cujas consequências parecem não ter a menor ideia. Em lugar da linha de  Chávez, Evo Morales ou Rafael Correa, prefiro a da chilena Michelle Bachelet e a  de Lula. Eles perseguem mudanças menos traumáticas e não criam conflitos  viscerais entre grupos sociais.
O presidente Lula tem condenado com insistência o embargo  comercial americano a Cuba. O que você acha disso?
Se o objetivo do  embargo era enfraquecer a ditadura, não funcionou. Essa política não afeta os  governantes, que continuam vivendo muito bem e importando os produtos que  desejam. Tampouco se plantou na ilha uma semente de insatisfação capaz de  desestabilizar o governo. A maior parte das pessoas que eram contra o regime já  escapou da ilha. Acima de tudo, o embargo tem sido o maior pretexto do governo  cubano para justificar o descalabro econômico no país. Diante de cada coisa que  não funciona, o partido comunista diz que a culpa é dos americanos. Sou  totalmente contra o embargo. Não porque ache que as coisas seriam muito  diferentes se ele deixasse de existir, e sim porque seu fim eliminaria o  argumento oficial de que estamos em uma praça sitiada e, por causa disso, o povo  deve aceitar as mazelas cubanas.
Você acha possível que um dia Cuba libere a viagem de  cubanos ao exterior?
Tenho escutado esses boatos, mas é improvável que  isso ocorra. O controle de entrada e saída é talvez a mais importante arma do  governo para manter a fidelidade ideológica. Imagine o que pensaria meu vizinho,  um militante do partido que ganha em moeda nacional, se eu fosse ao Brasil,  conhecesse várias cidades e voltasse cheia de histórias para contar sobre o que  vi e comi. Seria um golpe muito forte no estado. No mais, essa questão é antiga.  Eu até coloquei no blog uma foto de uma revista espanhola de 1991 na qual uma  autoridade cubana fala da iminência da liberação das viagens. Já se passaram  dezoito anos desde então, e nada mudou.
| "Vivo o dilema da mãe cubana: manter o filho aqui mesmo sabendo que um dia ele terá problemas com o governo ou deixá-lo ir embora para realizar seus sonhos. Eu ficaria feliz se Teo não precisasse sair, mas creio que ele será um emigrante" | 
Caso consiga permissão para vir ao Brasil, você pensaria  em ficar e trabalhar aqui?
Não tenho esse plano. A matéria-prima do meu  trabalho é a realidade cubana. Não quero e não posso ficar longe das minhas  histórias. Se pudesse viajar, eu certamente o faria, mas não seria apenas para o  Brasil. Tenho de passar nos Estados Unidos e na Espanha para receber os prêmios  que ganhei. Talvez desse um pulo à Alemanha e à Suíça. E só. Faz tempo que  aprendi que a vida para mim não está em outro lugar a não ser em Cuba. Para o  meu país eu voltarei sempre.
Raúl tem 78 anos e Fidel está à beira da morte. Quem vai  assumir o poder em Cuba quando eles forem embora?
Os futuros governantes  de Cuba serão pessoas comuns, que não conhecemos. Não mostram publicamente suas  ideias reformistas por medo de que aconteça a elas o mesmo que ocorreu com  Carlos Lage, o médico que era vice-presidente e foi condenado ao ostracismo.  Quando a velha-guarda deixar o poder, muita gente carismática e talentosa sairá  das sombras. Será como na União Soviética. Até assumir a Presidência, Mikhail  Gorbachev tinha uma trajetória cinza. Era um funcionário a mais, fiel ao  partido. No Kremlin, destacou-se como um transformador.
Seu filho completou 14 anos. Qual é o futuro que o  espera?
Teo é um garoto inquieto. Foi criado em clima de tolerância e  liberdade. Ele terá muita dificuldade se Cuba continuar assim. Cedo ou tarde,  vai esbarrar nesse muro e pensará em sair. Isso me dói muito. Vivo o dilema da  mãe cubana: manter o filho aqui mesmo sabendo que um dia ele terá problemas com  o governo ou deixá-lo ir embora para realizar seus sonhos. Eu ficaria feliz se  Teo não precisasse sair, mas creio que ele será um emigrante.
Como é a situação econômica atual comparada à grande crise  ocorrida quando Cuba perdeu a mesada da União Soviética?
A crise  contemporânea ainda não se compara com a dos anos 90. Naquele tempo meus pais me  mandavam ir dormir mais cedo porque não tínhamos o que comer. Minha magreza é,  em parte, uma sequela daquele período de fome. Hoje certamente há uma recaída  econômica muito forte. A produção nacional é ínfima e obriga Cuba a importar 80%  dos alimentos que consome. O problema é que o país não tem liquidez para comprar  no exterior. A queda, contudo, está sendo amortecida pelo turismo, pelo dinheiro  enviado por cubanos do exterior e pela possibilidade de exercer uma profissão  ilegal.
A liberação de viagens de americanos para a ilha já mudou  alguma coisa?
Essa foi uma notícia magnífica para os cubanos, que agora  podem reencontrar seus parentes. Essas visitas ajudam também com palavras de  estímulo, dinheiro e produtos básicos. Lamentavelmente, nunca fomos tão  dependentes dos Estados Unidos.
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