Inúmeros estudos criminológicos vêm demonstrando que a seletividade, a corrupção institucional, a reprodução da violência e a morosidade "não são características conjunturais, senão estruturais do exercício do poder de todos os sistemas penais" (Zaffaroni). De outro lado, sabe-se que "as possibilidades de entrar na cifra negra dependem da classe social a que faz parte o delinqüente" (Hassemer).
Dados obtidos no Banco Central "mostram que, dos 1.591 processos que investigavam indícios de crimes financeiros, 827 (mais de 50% do total) foram arquivados pelo Ministério Público ou pelo Judiciário. Outros 5% dos processos levaram à condenação. E outros 578 casos viraram denúncia e iniciaram tramitação na Justiça" (Ela Wiecko de Castilho). Nos casos de condenação é muito rara a aplicação final da pena de prisão. O STJ confirma mais de 94% das condenações nos crimes de colarinho branco, mas muito raramente confirma a pena de prisão (três casos, em mais de mil) (O Estado de S. Paulo de 19.6.08, p. A 17).
Foram as teorias interacionistas (especialmente as do labelling approach) que denunciaram claramente a seletividade da Justiça criminal. Essas teorias, se por um lado se mostraram excessivas e às vezes sectárias em algumas de suas premissas, por outro, inegavelmente chamaram a atenção para o fato de que existem delitos em todos os setores e classes sociais (teoria da ubiqüidade), com a diferença de que quem detém algum tipo de poder e influência freqüentemente fica fora do âmbito de incidência da sanção penal (ou pelo menos evita a pena de prisão), o que demonstra que a Administração da Justiça atua seletivamente; é dizer, em geral, preferivelmente contra os setores mais baixos, contrariando princípios básicos do Estado de Direito como o da igualdade ou legalidade (obrigatoriedade) da ação penal. Quanto atua contra as classes sociais abastadas, a pena (quase nunca) é a de prisão.
Nos casos de competência originária do STF o que sobressai é a impunidade. Nos últimos seis anos foram iniciadas (no STF) 172 ações penais contra autoridades que gozam de foro especial por prerrogativa de função (ou seja: autoridades que são julgadas diretamente pelos tribunais). Nenhuma condenação, até agora, aconteceu (O Estado de S. Paulo de 3.1.09, p. A6). Das 172 denúncias, 46 delas foram rejeitadas liminarmente pela Corte. Nove foram julgadas improcedentes de plano.
Se de um lado nunca deixou de ser discutível a existência do foro especial por prerrogativa de função, de outro, está mais do que comprovado que o STF, com apenas 11 Ministros, não possui a mínima condição de presidir a tramitação de tantas ações penais originárias (originárias porque são processos que começam e terminam dentro do próprio STF).
Há um descompasso gigantesco entre a capacidade de atuação dos Ministros (e de resolução de conflitos) (output) e o input do sistema (ingresso de novas ações penais): o que entra no Tribunal (no STF) é centenas de vezes superior à sua capacidade estrutural, material e pessoal. As coisas parecem terem sido programadas propositadamente para não funcionar. A sensação que fica é a de que teria havido uma engenharia macabra para criar um sistema totalmente ineficaz.
Somando-se a seletividade da investigação (nem todos os crimes são investigados) com a absoluta ineficácia do STF para fazer andar os processos de sua competência originária, não poderia resultar outra coisa que não fosse a impunidade total. Isso é ruim para o efeito preventivo da pena e mais pernicioso ainda para o país (que não vê nunca nada de concreto acontecendo contra a corrupção imanente que permeia os caminhos transitados por muitas autoridades que governam nosso país). Até quando tudo isso vai durar?
Paralelamente à incapacidade do STF para fazer tramitar tantas ações penais, vale recordar o seguinte: quando a autoridade deixa sua função, acaba o foro especial no STF(que cancelou a clássica Súmula 394). O processo, nesse caso, volta para a primeira instância. Se essa ex-autoridade se torna deputado federal mais uma vez, volta o processo para o STF. A morosidade da Justiça também se deve a esse fator. A impunidade, por seu turno, também pode derivar do seguinte: quando o STF coloca o caso em pauta para julgamento, pode ser que o parlamentar venha a renunciar ao seu mandato (caso Ronaldo Cunha Lima). Tudo volta para a primeira instância. Como se vê, são tantas as possibilidades de manobra que dificilmente uma ação penal (no STF) acabe resultando em condenação.
Uma das possíveis soluções, claro, passa pela criação de um (específico) Juizado de Instrução, que funcionaria como órgão auxiliar do STF, composto de juízes independentes, de carreira, que deveriam se submeter a um novo concurso (prova escrita e oral), sendo nomeados pelo Presidente do STF. Toda investigação deveria ser presidida pela Polícia Federal e/ou pelo Ministério Público. Os juízes do Juizado de Instrução seriam juizes de garantia. Nas mãos deles estariam todas as medidas cautelares (provas periciais, interceptação telefônica, quebra de sigilos etc.) e a realização de toda instrução criminal. Uma vez recebida a denúncia, pelo STF, toda instrução criminal seria presidida por esses juízes instrutores. O julgamento final caberia também, evidentemente, ao STF.
A idéia que acaba de ser lançada tem a vantagem de evitar que um dos Ministros do Supremo seja o relator instrutor (como aberrantemente é hoje). Isso compromete sua imparcialidade. Aliás, é totalmente inconstitucional. O Min. Joaquim Barbosa, por exemplo, está totalmente comprometido com o caso "Mensalão". Não irá nunca julgar essa causa com isenção, em razão do seu comprometimento moral, psicológico e funcional. Já não é um juiz independente para julgar esse caso. Deveria, evidentemente, ser afastado do processo.
E ainda há uma outra agravante: se houver condenação, com certeza o caso vai parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos (por violação da garantia do juiz imparcial). A chance de anular tudo é muito grande. O tempo vai passar, a prescrição vai chegar e a impunidade vai se perpetuar.
É assim que funciona a Justiça brasileira contra as autoridades que gozam de foro especial por prerrogativa de função. Em outras palavras: o Brasil, para as autoridades corruptas, continua sendo um dos mais promissores paraísos penais. Agora com o selo ISO 509: são 509 anos de tradição de impunidade. Meio milênio de falcatruas e onde praticamente nada criminalmente acontece (contra algumas autoridades). Esse é o nosso Brasil que, obviamente, continua deitado em berço esplêndido.
Luiz Flávio Gomes no Migalhas